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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) emitiu no
último 15 de dezembro a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil
Verde vs Brasil, condenando o Estado brasileiro por ser internacionalmente
responsável por não garantir a proteção de 85 trabalhadores de serem submetidos
à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado
a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta
condição.
Em consequência de sua condenação, o Estado brasileiro
deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a
prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e reparar as vítimas pelos
danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores
e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados na fiscalização de 2000, que
receberão 40 mil dólares cada um, por terem sido submetidos a trabalho escravo
e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de justiça, outros 43
trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil
dólares cada.
Tais valores dizem por si a gravidade das ofensas sofridas
por essas pessoas.
A fiscalização de março de 2000 documentou que encontrou
trabalhadores em situação de escravidão. Foram aliciados por um 'gato' no
interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até
chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram
documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um
descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na
fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem
eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era
insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se
adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era
realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.
A sentença ora publicada é histórica, porque é a primeira
vez que a proibição da escravidão e da servidão é aplicada no julgamento de um
caso concreto no Continente Americano, estabelecendo parâmetros para o conceito
previsto no art. 6º da Convenção Americana, em particular na definição do que
se considera responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão
moderna e ao tráfico de pessoas.
A sentença é também paradigmática porque reconhece
que a violação ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um
contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em
razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Descreve que tal
discriminação foi reiterada por parte da administração de justiça e outros
setores, quando as vítimas ou seus representantes, em busca do reconhecimento
de sua dignidade, recorreram à justiça para denunciar a submissão à servidão e
tráfico, pleiteando a devida reparação, e não receberam qualquer resposta do
poder judiciário.
O Tribunal considerou que as características específicas a
que foram submetidos os trabalhadores resgatados em março de 2000 foram
além da servidão por dívida e do trabalho forçado, ao configurar: “violação à
integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção
física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento);
os tratamentos indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de
trabalho) e a limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em
razão de dívidas e do trabalho forçado exigido), foram elementos
constitutivos da escravidão no presente caso”. “Foi constatada a
existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação
de documentos e a presença de menores de idade”.
Na Sentença fica explicitada a responsabilidade dos Estados
“de garantir as condições necessárias para que não ocorram violações a esse
direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e
terceiros particulares atentem contra ele”. Os Estados devem assegurar “que
nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho
forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas
para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser
submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e
livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição”.
Para Xavier Plassat, Coordenador da Campanha Nacional
de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT: “se por um lado é
lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta
contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado
é muito oportuno, na conjuntura política que essa sentença é proferida,
que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade
internacional para que não deixe de ser a referência à qual chegou a ser
identificado - por várias instâncias da ONU, inclusive a OIT - no combate ao
trabalho escravo”.
A obstrução às garantias do sistema de justiça também foi
uma das principais violações constatadas no Caso Brasil Verde, pois nenhum dos
perpetradores chegou a ser efetivamente responsabilizado e nenhuma das vítimas
recebeu reparação.
Nesse sentido, Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL
para o Programa do Brasil, enfatiza que “a decisão do Tribunal é
emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o
caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do
Direito Internacional por entender que a aplicação da prescrição constitui
obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos
responsáveis e para a reparação das vítimas.”
O combate à escravidão contemporânea requer uma ação de
caráter integral. Além de pressupor uma normativa com conceitos vigorosos, hoje
no Brasil já garantida na formulação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro,
é necessário que a atuação repressiva e judiciária seja eficiente. A sentença
da Corte Interamericana reforça a tese de que combater o trabalho escravo
requer políticas abrangentes que possibilitem a educação, o combate a
discriminação de raça e de gênero, o acesso ao direito ao pleno
desenvolvimento, acesso a terra, e a erradicação de todas as demais mazelas que
caracterizam a discriminação estrutural que a Abolição de 1888 ainda não
superou.
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