Cresceu sob as vinhetas do Rio de Janeiro. Este era - e
ainda é para alguns estrangeiros - a figura urbana do Brasil, ornamentada pelo
Cristo Redentor. São Paulo, sobretudo em seu centro histórico, também herdou as
pompas de Paris e de Londres. A catedral da Sé, rodeada de automóveis feitos de
aço, lanternas reluzentes, redondos e curtos como chalés, motoristas
imponentes, cheios de boné e sabedoria, encimava nossa praça de muitas
primaveras políticas. O pátio do colégio, hoje quase só visto por advogados que
procuram seus processos no arquivo, expandiu-se qual um belo pinheiro. Carrega
a história dos regimentos militares prontos para partir nas Emboabas. Todos os
pátios têm a virtude de carregar um pouco de ideias e de história. O prédio do
Tribunal de Justiça do Estado até hoje nada deve a seus irmãos da Europa. O
Largo de São Francisco e sua célebre Faculdade de Direito, desde 1827,
irradiava a boêmia dos acadêmicos, a sisudez dos mestres e a cultura
humanística dos bacharéis.
Os paulistanos revelaram desde sempre incurial vocação para
o trabalho duro, a criatividade e o empreendedorismo. É certo que o
planejamento estruturante nunca foi seu forte. Porém, jamais descuidou da
política, no sentido bom do tratamento da "res publica". A Câmara de
Vereadores iniciava suas sessões depois de o último parlamentar, em geral vindo
a cavalo das bandas de Santo Amaro, percorrendo a estrada que hoje é Avenida,
tomar assento. Como hoje, discutiam-se temas importantes e picuinhas próprias
da época.
Ao ser acolhido pela Capital que crescia com índole
febricitante, em 1958,vindo do interior, apeado de uma magnífica carruagem da
Companhia Paulista de Estrada de Ferro, veio-me a ideia de primeiro mundo, no
entorno da Estação da Luz. Talvez não se tenha criado um nome tão representativo
para uma estação de trem.
São Paulo era respirável. Não só por seu clima ideal; já
respirava o saber de todas as ciências, impulsionado pela formação da USP, em
1934, concentração e consolidação; além da venerável Faculdade de Direito, do
Liceu de Artes e Ofícios, Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas, Escola Politécnica, Escola de Farmácia, Escola de Agricultura,
Faculdade de Medicina, Faculdade de Saúde Pública e Instituto de Veterinária, e
expansão vertiginosa a todos os ramos do saber.
Uma periferia extensa, mas não compacta, larga, arejada, de
amplos e abertos horizontes, abrigava seus trabalhadores, entremeados de
gentios, negros, imigrantes europeus, e a brava gente do nordeste, que já
enraizava os primeiros prédios, encimados pela torre do Banespa e o Martinelli.
Via-se um bairro de outro, num altiplano ou num fundo de vale. Lembro-me de
haver indagado de meu pai, no Jabaquara, se as luzes que víamos pelos lados do
Jardim da Saúde e do Ipiranga eram São Paulo. População imensamente criativa ao
dar nome a seus sítios: Bairro do Limão, Casa Verde, Freguesia do Ó (!),Quarta
Parada, Água Rasa, Água Funda, e a imortal Bela Vista dos poetas
noturnos.
O transporte coletivo, sempre ruim, valia-se da Companhia
Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), de ônibus "papas-fila" e
bondes, "abertos" e "fechados". Esse não foi um capítulo
lírico, mas de heroísmo. Heroísmo dessa brava gente que ergueu uma das
metrópoles maiores do mundo, com perdão do lugar comum, a sangue, suor e lágrimas.
Hoje não caminhamos para, estamos no caos. Isso não
significa, porém, que a grandiosidade dessa obra única no mundo caminhe
necessariamente para a entropia. O homem e sua racionalidade são
fundamentalmente adaptáveis às circunstâncias que criam, principalmente no
mundo de elevada tecnologia. E capaz de transformá-las. A revolução nas
comunicações já dispensa grande parte das transições físicas. A preservação e a
recomposição do verde devem estar na agenda de todo político. Não estão, bem o
sabemos, mas é o eterno maniqueísmo, por mais que não se o admitam. As próximas
décadas deverão ser a redenção de São Paulo. Acreditamos nisso, talvez por
amor. Caso contrário, tudo ruirá e, como disse Bertold Brecht, da minha cidade
só restarão os ventos que sopram sobre ela.
Quanta saudade dos tempos, Tom Zé:
"São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor" (...)
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é poeta e autor do
livro "Universo Invisível". Advogado e membro da Academia
Latino-Americana de Ciências Humanas.
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